segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Memórias

Paulo Wainberg

De acordo com cientistas, psiquiatras e outros estudiosos da mente, um fenômeno bastante comum do cérebro humano é a denominada memória seletiva.

Falando francamente, não sei se é doença, deficiência ou mania.

Há quem diga – e quem sou eu para discutir – que se trata de um dos componentes do EGO que, consta, possui vários outros.

A memória seletiva funciona assim: Você lembra da happy hour com amigos, no bar de sempre, e não de passar no supermercado para comprar salame, alface e couve-flor. Não é esquecimento, você não esquece da existência do supermercado. Porém você não seleciona, na sua memória, que tinha de ir lá fazer as compras. Você selecionou apenas o que lhe convinha e arquivou o resto.

E não vai.

Entramos, aqui, no terreno das realidades individuais: A realidade do bar com os amigos, cerveja e picadinho de queijo está próxima de você, integra seu cotidiano, enquanto que a realidade de compras no supermercado está tão distante de você quanto as posições preferidas pelas baleias azuis, quando fazem sexo.

Isto, mal explicando, é um resumo do fenômeno mental da memória seletiva.

Já o Mal de Alzheimer é uma doença muito grave, que atinge o sistema nervoso e destrói a memória. Não é assunto para brincadeira, há muita gente e muitas famílias que sofrem com essa doença terrível e para qual, ao que sei, estamos longe de descobrir a cura.

Vocês, que costumam ler minhas mal traçadas linhas, sabem que sou fascinado pela investigação científica. Não resisto à ideia de pesquisar a origem da gosma lêsmica, ou o que acontece com a boca dos peixes que morderam a isca e se machucaram com o anzol, quando devolvidos à água pelos pescadores esportivos. E outros assuntos de importância cotidiana: Por que é tão difícil abrir o papel que envolve o DVD? Qual a relevância de franjas em determinados tipos de cobertores?

Percorrendo essa senda de vitórias, estabeleço relações entre os vários ramos da ciência e descobri um novo evento mental, altamente funcional, que submeto, agora, à comunidade científica internacional.

Estou falando do Alzheimer Seletivo, um contraponto adicional e altamente positivo à memória seletiva.

Conforme a minha pesquisa, o portador do Alzheimer Seletivo só esquece aquilo que quer.

Percebeste? Na memória seletiva o cara só lembra aquilo que quer e no Alzheimer Seletivo ele esquece aquilo que quer.

Nada melhor do que reduzir a teoria à prática para ilustrar a profundidade científica da tese:

– Haroldo, são quatro horas da manhã! Onde você esteve?

– Pois é, onde eu estive?

– Todo desgrenhado e fedendo à álcool!

– Quem?

– Você Haroldo, não se faça de louco!

– Que horas são, meu bem?

– Quatro da madrugada, cretino!

– E por que estamos acordados a esta hora?

Compreendeu o processo? Você vai esquecendo aos poucos, até que esquece tudo. No dia seguinte, no café da manhã, pergunta a ela, várias vezes, o que ela vai fazer hoje a tarde, cada pergunta no máximo cinco minutos depois da resposta dela.

No trabalho, você é um funcionário público lotado na Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia.

Passa o dia cumprindo diligentemente suas funções, animado com a perspectiva de assistir, à noite, o jogo do seu time, pela televisão. Aí pelas cinco e meia, seu chefe chama você:

– Haroldo, olha só esse convite. Hoje à noite tem um encontro da Associação dos Fabricantes de Botijões de Gás, para demonstrar um novo e mais econômico modelo de rosca de botijão, onde se engata a borboleta ao tubo de plástico que conduz o gás ao fogão e ao aquecedor.

– Interessante, chefe.

– Também acho. E nossa Secretaria não pode faltar, estarão lá altos escalões, inclusive da Assembléia Legislativa e do Governo do Estado.

Haroldo lê o convite e vê que, às 20,30 horas o presidente da Associação fará uma palestra sobre o tema, de aproximadamente uma hora. Depois do intervalo para o cafezinho, será exibido um filme, um documentário que explica a técnica de funcionamento do novo modelo de rosca, desde o momento em que a idéia foi concebida até à montagem final além dos testes de excelência e o resultado final. O filme-documentário tem cerca de quarenta e cinco minutos de duração. Após, será servido o coquetel.

– Haroldo – diz o chefe – você, como chefe do Departamento de Pesquisas, irá ao encontro representando a Secretaria. Grande honra, hein? Eu mesmo queria ir, mas prometi ao meu sobrinho levá-lo ao jogo, hoje à noite.

– Onde o senhor quer que eu vá, chefe?

– Ao encontro, Haroldo, está tudo aí no convite.

– Convite? – pergunta Haroldo, revirando o papel de um lado para o outro. – Quando vai ser isso?

– Hoje, Haroldo! Já lhe disse, hoje à noite. Você está caçoando de mim?

– Ah, sim, hoje a noite... onde é mesmo? Ah, já sei, vou sim, claro que vou.

Haroldo volta para sua sala, deixa passar três minutos e volta:

– Chefe, posso sair dez minutos mais cedo, hoje? Fiquei de levar minha mulher a um... a um... não sei, ela me falou qualquer coisa...

– Haroldo, você está louco? Acabei de combinar que você vai representar a Secretaria no encontro...

– Eu? O senhor combinou alguma coisa comigo? Ah, aí está o relatório que prometi para hoje. O que foi mesmo que o senhor me pediu?

O chefe olha com espanto para Haroldo. O que está acontecendo com o homem, que não consegue lembrar o que combinou há cinco minutos?

– Você não se lembra da nossa combinação, Haroldo? De representar a Secretaria no encontro da Associação dos Fabricantes de Botijão de Gás?

– Acho que o senhor falou com outro, chefe. Nem sabia que existe uma associação dos fabricantes de botijão de gás. Então, posso ir? Minha mulher odeia quando me atraso.

Deixando o chefe de boca aberta, Haroldo pega suas coisas e vai para casa, pronto para um jantarzinho e depois assistir o jogo na TV.

Ele, é claro, não tinha esquecido absolutamente nada, apenas selecionou o que precisava esquecer.

Durante o jantar, apenas para treinar, perguntou três vezes à mulher o que ela tinha feito de tarde.

No restante de suas atividades, completa normalidade. Manteve-se produtivo e eficiente no trabalho, cuidava dos assuntos domésticos, inclusive dos problemas dos filhos, continuava sendo a pessoa responsável de sempre. Repetir a mesma frase umas quatro vezes, em intervalos de quinze minutos, além de ser um bom treinamento, mantinha uma tensão agradável entre ele, a mulher, os colegas, o chefe principalmente, e a empregada doméstica. Adorava perguntar a ela, várias vezes, onde ela tinha posto as meias pretas dele. E quando ela, irritada, pegava as meias e colocava bem à vista, sobre a cama, aí mesmo é que ele insistia em querer saber onde estavam as meias pretas.

Certo sábado, na volta do cinema, a mulher disse:

– Haroldo, amanha vai ter churrasco lá em casa.

– É? Só nós?

– Não. Convidei meus pais, minhas duas irmãs e seus maridos, as crianças, e uma colega nossa de infância que está na cidade com o marido e os três filhos. Vai ser ótimo matarmos a saudade.

– Tudo bem, amanhã de manhã eu compro a carne, o carvão e as bebidas.

Aí pelas nove horas do domingo, depois de tomar o café e ler o jornal, Haroldo pegou o carro e saiu. Quando retornou, às oito da noite, a casa estava um pandemônio.

– Haroldo, que foi que houve, já ligamos para os hospitais, para a Polícia, onde foi que você se meteu?

– Como assim? – Ele olhava espantado para mulher, os sogros e os filhos. As irmãs e as amigas já tinham ido embora.

– Como assim? Você sai de manhã para comprar a carne para o churrasco e volta para casa a esta hora?

– Carne de churrasco? Mas você sabe que nunca faço churrasco em dia de semana...

– Hoje é domingo Haroldo! O que está havendo com você? Já estou ficando preocupada.

– Hoje é domingo? Tem certeza?

– Claro que sim, Haroldo, você ficou louco?

Estranho... Bem, então vou para cama porque amanhã preciso acordar cedo para o trabalho.

Perceberam o que significa o Alzheimer Seletivo? É o melhor método jamais criado para você se livrar do que não deseja fazer, como ir à festa de um ano da filha de uma amiga de seu cunhado, não assistir à cerimônia de formatura da faculdade de Medicina e outras situações pertinentes. Você simplesmente seleciona o que deseja esquecer e faz apenas aquilo que deseja se lembrar.

Usei o exemplo masculino para demonstrar a tese, mas o Alzheimer Seletivo pode ser perfeitamente adotado pelas mulheres, para esquecer de propósito outras coisas além das que elas já esquecem ao natural, como o lugar onde deixaram o celular, as chaves do carro, a bolsa, onde está aquela blusa comprada ontem e, pelo amor de Deus, será que o talão de cheques ficou na sapataria?

Acredito firmemente que um mundo movido à memória seletiva e Alzheimer Seletivo é um novo mundo possível, mais justo, mais humano e com menos injustiças sociais.

Pensem nisso. Talvez vocês estejam lendo o futuro Prêmio Nobel da Ciência.

Nenhum comentário: