quarta-feira, 23 de junho de 2010

Fibrilações mentais

Paulo Wainberg

INTRODUÇÃO

“Após o Grande Vírus, boa parte dos registros foram adulterados, razão pela qual a precisão histórica fica prejudicada.

O seguinte relatório só foi possível graças a resíduos de um material antigo, chamado ‘papel’, em que letras impressas formavam palavras que, aparentemente, davam sentido aos pensamentos.

Felizmente hoje não precisamos mais disto.”

Ass.: O Historiador.



O Brasil ganhou seu décimo campeonato mundial na Copa de Helzinski, a primeira disputada no gelo, em 2042. Na condição de único país participante de todas as Copas, coube ao Brasil a honra de abrir a competição no Monumental de Reikjawik, numa homenagem da FIFA à Finlândia e demais países nórdicos.

Algo assim.

Após aquele mundial, a FIFA assumiu de direito o que exercia de fato há uma década, quando a última ditadura desapareceu: o Governo Mundial.

Foi inusitada, para aqueles conturbados tempos, a queda da ditadura da Coréia do Norte, remanescente dos governos autoritários, desde quando a família Castro enjoou do poder, em 2028, e seu representante da época mandou os cubanos literalmente à merda, num discurso de doze horas e meia em que contou a história da revolução, desde 1959, detalhadamente, exortando seu avô e seu pai com grandes heróis, salvadores da Humanidade, tanto que, graças a eles fora possível permitir acesso à Internet a todos os cubanos, semana passada.

Quatro e meia da madrugada, ninguém mais assistia à única TV em Cuba, a oficial.

O auditório dava sinais explícitos de impaciência e trezentos cubanos dormiam nos corredores do Palácio de las Convenciones, em Havana, embalados pela voz pausada, suave e tranquilizadora de El Presidente.

Poucos escutaram quando ele disse que a família Castro estava cansada de cuidar do País há tanto tempo e só ouvir reclamações.

– A la mierda! – declarou Fidel Raul Castro Castrito. – A partir de hoy, pueden elegir su próprio Presidente! Y que Dios tienga piedad de sus almas!

E o povo ululou, enquanto El ex-Presidente dirigiu-se aos camarins, onde refrescou-se com espumante e fumou um charuto cubano dos bons.

Como última ditadura do planeta, sob a mão de ferro de Park Liu Park, a Coréia do Norte aguentou-se mais dez anos, sempre ameaçando a Coréia do Sul e os Estados Unidos com seus testes nucleares.

Naquele sábado chuvoso de fevereiro de 2038, às onze horas da manhã, o Comandante em Chefe das Forças Armadas Coreanas do Norte, Liu Park Park deu a ordem de invasão.

E foram com tudo, Marinha, Exército, Aeronáutica, mísseis nucleares armados e apontados, rumo à Coréia do Sul que, totalmente desprevenida, entregou-se como vaca ao touro.

Entrou pisando firme no Palácio do Governo, sob o olhar atônito de funcionários sul-coreanos então ocupados com suas burocracias, o Comandante em Chefe, trajando uniforme de gala, invadiu o gabinete de Park Park Liu, o Premier, e depôs sua espada de cabo de ouro e lâmina de aço aos pés dele:

– Premier, venho apresentar nossa rendição!

– Como é que é? – duvidou o estupefato baixinho (dizem os registros que Park Park Liu tinha um metro e trinta de altura).

– Estamos nos rendendo aos nossos irmãos da Coréia do Sul.

– Mas...

– A grande República Democrática da Coréia do Norte se entrega, Premier! Desistimos do ideal socialista porque nosso povo quer tênis adidas nos pés, carros esportivos nas mãos e pizza na mesa. Ah, e assistir futebol ao vivo na televisão.

– Mas....

– Nem mas nem menos, ó grande líder Park Park Liu. Eu, Liu Park Park, Comandante em Chefe das Forças Armadas da República Democrática da Coréia do Norte, deposito aos seus pés a Sagrada Espada Fu-Num-Fu do Poder. Com este gesto simbólico declaro que nossas Forças Armadas e nosso arsenal de armas, inclusive as nucleares, agora pertencem à Coréia do Sul.

Estarrecido e atônito, Park Park Liu, o Premier, olhou para a Sagrada Espada, sinistramente pousada aos seus pés, no piso de madeira brilhante do gabinete. Abaixou-se, com mãos trêmulas segurou a arma e a colocou sobre a mesa, dizendo para Liu Park Park:

– Um minutinho só.

Em seguida pegou o telefone vermelho e entrou em contato com Park Park Park, o Presidente do País, comunicando o acontecido.

Em menos de uma hora o mundo inteiro exultava. A última ditadura caíra, a última ameaça à Humanidade desaparecera.

– Exijo tratamento de prisioneiro de guerra, conforme a Convenção de Genebra – finalizou Liu Park Park, pondo fim à reunião.

E foi assim que, em menos de duas horas, a Coréia do Norte invadiu a Coréia do Sul, tomou conta do País e se rendeu.

O ditador da Coréia do Norte, num inflamado discurso perante as emissoras oficiais, exortou o povo à resistência.

A gargalhada foi ouvida a quilômetros.

Na semana seguinte a Coréia do Norte transformou-se no bairro pobre da Coréia do Sul que adotou o nome de Duas Coréias.

Em dez dias as multinacionais, quais formigas vermelhas sobre o carnegão do furúnculo, assumiram as coisas. A mídia mundial mostrava a população norte-coreana, principalmente os idosos mais velhos, com seus sorrisos desdentados, tomando coca-cola e comendo cachorros-quentes e xisburguers com ovo, pela primeira vez na vida.

Feliz da vida, a ONU passou a encarregar a FIFA de resolver discórdias internacionais.

Quando havia uma discussão sobre, por exemplo, a criação de barreiras para importação e exportação de determinados produtos, o caso era encaminhado para a FIFA que designava uma melhor de três entre as respectivas seleções nacionais, ida e volta e o desempate em campo neutro. Caso persistisse o empate em todos os critérios, prorrogação e pênaltis.

A seleção vencedora dava ao seu país o ganho de causa.

Cada vez mais a ONU usou desse expediente que a FIFA executou, com todo o prazer.

O resultado imediato foi que os países desviaram suas energias e os bilhões de dólares empregados na indústria bélica para a formação de jogadores de futebol, formando seleções cada vez mais fortes.

As organizações terroristas foram dizimadas pelos próprios adeptos que preferiam muito mais uma boa partida de futebol do que explosões de pessoas em supermercados, metrôs e aviões.

Lentamente, o mundo acostumou-se com a nova Ordem.

Quando o capitão Capita Carlos Alberto Quinto ergueu a taça FIFA e piscou marotamente o olho para o técnico Zagallo Décimo Terceiro, a ONU se auto-dissolveu e entregou o comando definitivo do mundo à FIFA.

Inspirada no modelo legislativo da Seleção decacampeã do mundo, a FIFA editou sua primeira medida provisória: Fica definitiva, perfunctória e peremptoriamente proibida a utilização de recursos eletrônicos para ajudar o árbitro da partida.

E não se discutia mais!

Na exposição de motivos do Comitê do Caderno de Encargos, explicou-se que o erro de arbitragem e, até mesmo o roubo, fazem parte do futebol. Que, conforme pesquisa do Ibope Internacional, as pessoas passam dois terços de sua vida útil (Nota do Historiador. – Naqueles tempos a média de vida era de apenas cento e vinte anos) discutindo se foi ou não foi pênalti, se o cara estava impedido, se o caso era para cartão amarelo ou vermelho, se o bandeirinha estava comprado pelo adversário e outras incidências do jogo, sobretudo a honra do árbitro. Que, caso eliminassem o erro e/ou o roubo, mediante análise dos lances confusos através de replays de televisão postas no campo à disposição da arbitragem, sobre o que falaria a Humanidade durante cerca de oitenta anos de vida?

Cabia à Assembléia Geral da FIFA elaborar os textos e as exigências do Caderno de Encargos, que envolviam desde as exigências urbanas sobre obras estruturais, construção e reformas de estádios, tráfego de planadores individuais, construções de mais andares subterrâneos de metrô, até normas de comportamento, direitos e obrigações dos cidadãos, leis penais, civis e comerciais.

Após cinco meses da instalação da nova Ordem, o Caderno de Encargos era constituído de sete mil e oitocentas páginas divididas em vinte volumes holográficos.

Outra decisão definitiva foi proibir que questões internacionais fossem decididas através de competições oficiais da FIFA, como Eliminatórias da Copa do Mundo, a própria Copa do Mundo, Copa das Confederações e várias outras. Os conflitos pontuais exigiam jogos inter-seleções pontuais. No parágrafo único, ficava determinantemente proibida a manutenção de seleções nacionais permanentes.

As datas FIFA e os prazos de treinamento eram rígidos.

Por fim e para o que interessa, determinou que, em qualquer hipótese, as seleções nacionais seriam formadas apenas por jogadores atuando nos respectivos países. Com isto evitava, a entidade suprema, o aliciamento, a compra e a naturalização oportunista de jogadores de futebol.

Os países membros, adaptando-se à nova Ordem, modificaram suas estruturas políticas: os prefeitos, governadores e presidentes da república eram indicados pelos clubes de futebol, desde que fizessem parte da diretoria, e eleitos pelo voto direto dos respectivos associados.

Não havia mais necessidade de vereadores, deputados e, supremo avanço da época, de senadores!

O benefício de tal normativa foi que as discussões sobre qual time tinha a maior torcida acabaram, porque a maior torcida era a que elegia seus representantes.

Foi assim que Richard Teixeira The Fourth, bisneto de Ricardo Teixeira o Primeiro, Presidente permanente da Confederação Brasileira de Futebol, tornou-se Presidente da República e, como tal permaneceu até o fim dos seus dias, sendo sucedido por seu filho Richard Teicherth the Fifth.

Logo a seguir da FIFA no Poder instalou-se no Planeta a única e possível guerra: a dos patrocínios.

As seleções mais tradicionais eram cobiçadas e disputadas pelas grandes companhias, cabendo às companhias de menor porte a disputa pelas demais seleções.

A questão gerou o então conhecido efeito dominó, atingindo os clubes de futebol da primeira, da segunda e da terceira divisão, e pequenos rescaldos no futebol de várzea.

O benefício econômico e o crescimento do PIB mundial foi óbvio, decorrência lógica da chamada Guerra Branca: as companhias menores faziam de tudo para se transformar em companhias maiores, portanto cresciam. E as companhias maiores faziam de tudo para não perder o status, portanto também cresciam.

A Assembléia Geral da FIFA determinou que a Terra teria uma nova e única moeda, com o mesmo valor, o Soccter, pondo fim à especulação financeira, ao mercado cambial e valorizando astronomicamente a Bolsa de Valores.

A FIFA queria que a moeda se chamasse Soccer mas o redator do texto tinha péssimo sotaque e, ao digitar, errou. Quando Joseph Avelange Blesther Oitavo, Presidente plenipotenciário da FIFA se deu conta, era tarde.

Mudar a moeda era incogitável, seria um sinal de fraqueza cujas consequências o mundo não estava mais preparado para enfrentar;

O mundo viveu em paz por décadas e as únicas notícias de tumultos referiam-se à discussão e troca de sopapos entre jogadores, no calor da refrega. Ou da peleja.

Alguns árbitros e bandeirinhas recebiam empurrões e ouviam palavrões de dirigentes, nada demais, nada que não fosse inerente ao jogo.

Quando, finalmente, graças à tecnologia e à ciência, a Humanidade atingiu o presente estágio, as partidas de futebol passaram a ser jogadas mentalmente e, aos poucos, normas e leis foram dispensadas.

Alguns, antigos, reacionários e conservadores, utilizam os antigos aparelhos e passam replays de jogos velhos, onde se pode perceber claramente o horrível contato pessoal e indícios da terrível barbárie.

Felizmente, isto é História.





EPÍLOGO e AGRADECIMENTO



O Historiador agradece ao incentivo que recebeu de seus amigos e familiares, especialmente sua mãe que, ao ler este trabalho declarou, com seu belo sorriso: – Está muito bom, meu filho.

E realizou este trabalho graças ao patrocínio de João Tex, o que garante proteção total.

Envolva sua mente com João Tex e gargumilhe em paz.



HAROLDO VIGÉSIMO PRIMEIRO



SkyLab XXXV, 18/06/2098

Nenhum comentário: