terça-feira, 27 de julho de 2010

Crônicas Cotidianas

DIÁRIAS
Paulo Wainberg

Toda noite às três em ponto, faça chuva ou faça estrelas, um gato cruza na frente da minha janela.
Não sei se ele é preto ou pardo, branco não é. Espero uma lua cheia desabando em minha rua para descobrir. Temos pouca intimidade, ele surge do nada e para o nada vai, altivo e indiferente, nem olha para mim. Passa rápido, uma quase fugaz visão, quando junto os lábio para fazer psiu, ele sumiu.
Pontualidade absoluta. Minha sorte é que, nessa hora, estou diante da janela, olhando para a noite escorrendo lá fora. Caso contrário, não o veria.
O tempo fica lento, à noite. O enorme coqueiro que plantei na calçada, quando ele era apenas uma fina haste, raquítica e inviável, movimenta em câmera lenta as suas grandes palmas, bem ao contrário do dia, quando ele se abana e abana quem por ele passar.
Durante a noite, mil efeitos de luz provocados por lâmpadas brancas, amarelas ou pálidas, acrescidas de um esfumaçar de neblina ou gotas calientes de chuva, transformam a paisagem em cenário. Minha janela dá para mil janelas das casas e edifícios, onde luzes acendem, luzes apagam, sem qualquer nexo ou sentido.
Eu ali, observando, sinto um saudável prazer, posso controlar tudo e imaginar o que quiser, cada vez que uma janela se ilumina, cada vez que uma janela se apaga.
Às cinco meu vizinho da frente pega o carro e sai. Para onde? O que ele precisa fazer, naquela hora? Já pensei em perguntar, mas aí perde a graça. Ele pode me dizer que é um agente secreto do governo, saindo para uma missão. Ou então um estripador em série, em busca da próxima vítima.
E eu, como é que fico, sabendo de tudo?
Melhor não, melhor imaginar.
A realidade tem pouca graça. Vai ver ele tem que abrir a loja, fechar a padaria, qualquer outra coisa assim prosaica a fulminar minha imaginação.
Tem também o velhinho que sobe correndo a ladeira, com frio, com chuva e sereno, casaco de abrigo, calção e tênis, passos curtos, quase claudicantes. Que idade terá ele? Não faço a menor idéia, mas é um velhinho, disso não tenho dúvida. Sua postura é de velhinho, sua careca é de velhinho e seus passinhos são de velhinho.
Eu, velhinho também, invejo o cara que, com certeza, não sente dor nas pernas a cada passo que dá.
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Nos dias atuais, vocês não fazem idéia do quanto é difícil para um avô, ficar com sua netinha no colo, nem que seja por cinco minutos.
Esse avô chega em casa, do trabalho, sonhando em segurar a pequenina, dizer xoxoxô, golegolegole, passar o dedo no queixo, dizer pipipopó com voz fina e se deliciar com o sorriso dela. Mal estende os abraços e uma das circunstantes ordena: lavar as mãos, passar gel nas mãos, escovar os dentes, pentear os cabelos, tirar o casaco e lá vai o vovô, obediente, cumprir as determinações. Quando volta, ansioso, a circunstante mor, a mãe da menina, diz que agora não, ela vai mamar, agora não, ela acabou de mamar, agora não ela precisa arrotar, agora não ela vai regurgitar, agora não ela tá cocô, agora não porque agora não.
Após muita súplica, apelos pungentes e preces dolorosas, deposita a nenê nos braços desse avô feliz que, por alguns segundos, sente-se no paraíso, com sua netinha no colo, uma bonequinha perfeita, mas... A circunstante sênior, a vovô, logo em seguida estende os braços sequiosos e, com um sorriso cativante, pede para pegar a nenê um pouquinho. E, me respondam, como vai esse vovô dizer que não? E, não sem pesar, deposita a Luiza nos braços da avó, restando-lhe a alegria de rodear a dupla, enternecido e abobadamente feliz em, pelo menos, admirar a cena. Enquanto isto a circunstante mor mantém seu rígido controle: levanta a cabeça, baixa a cabeça, inclina para cima, tapa as perninhas. E nós obedecemos.
O que as circunstantes não sabem é que este vovô quer apenas adorar a Luiza enquanto se embriaga com seu perfume de nenê.

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Estamos enfrentando um grave problema de natureza psicológica, lá em casa. Toulouse , meu cão maltês, está profundamente ofendido comigo e mostra toda sua indignação recusando-me um simples abano de rabo.
Quando boto ele no sofá ao meu lado, lugar onde por anos assistimos juntos a televisão, ele se retorce todo e pula para o chão, dirigindo-se altaneiro para a sua cama. E lá se posta, não adianta chamar, assobiar, cadê meu cachorrão? Vem cá, vem, Toulouse! Aqui!
Nada. Ele não quer saber de mim nem de ninguém. Estou preocupado, ele ofendido e indignado pode se deprimir.
E tudo aconteceu por causa, é claro, das circunstantes, incluindo Nani, a babá, na verdade o Anjo, enviado pelos céus para cuidar da Luiza.
Foi assim:
Num dos raros e fugazes minutos que pude ficar com Luiza no colo, no sofá da sala, Toulouse veio, como sempre faz quando sento ali, lamber-me a mão e esticar-se de barriga para cima, pronto para o carinho.
Meu Pé de Laranja Lima! Que horror! Que sacrilégio! Mal Toulouse deu uma lambidinha no dorso da minha mão, que encostava nos seis cobertores que protegiam Luiza do frio, as circunstantes entraram em comoção uníssona: Fora, Toulouse! Já pra rua!
E o pobre, tamanhamente escorraçado, viu-se obrigado a sair do recinto, para gáudio das circunstante e para perplexidade deste avô cachorreiro.
Foi-se ele, cabisbaixo, rumo à sua caminha, de onde não saiu mais, pelo resto do dia.
Posso imaginar o que ele sentiu: preterido, abandonado, substituído, qualquer um sentiria a mesma coisa. Logo ele que reinava absoluto na casa, via-se agora posto de lado por um nenê que ele nem sabe que existe, mas pressente com uma clareza impressionante.
E instalou-se o drama.
Depois disto, tento mostrar ao Toulouse que ele não perdeu o lugar e que gosto dele como sempre. E que meu amor por Luiza não é incompatível com ele.
Está difícil, mas acredito que vou conseguir trazer Toulouse de volta.
Cães, minha gente, não são gatos.
O nome de Toulouse não é uma homenagem ao Lautrec, pintor impressionista dos cabarés de Paris, especialmente do Moulin Rouge. É, isto sim, uma homenagem a outro Toulouse, antigo cachorro de um antigo amigo.

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