sábado, 20 de novembro de 2010

CERTOS DIAS

Paulo Wainberg
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Certos dias... Certos dias sou como a fábula da groselha e da maçã, que jamais foi escrita.

Certos dias, jamais fui escrito.

É quando meu olhar nada vê, mesmo que tantas paisagens passem por ele.

Certos dias estou cego e penso no velho, antigo e desaparecido amigo do colégio, com quem varava as madrugadas falando francês, eu porque sabia, ele porque queria aprender.

Eram noites frias que nós percorríamos até chegar a madrugada, por avenidas solitárias de Porto Alegre cruzadas por bondes barulhentos, de hora em hora.

Comigo ele aprendeu algumas palavras em francês, doce língua do amor, graças a poemas declamados sob o fervor de paixões indizíveis, pelas colegas de aula, inacessíveis, e hoje derrotadas pelo tempo, cruel Saturno devorador dos próprios filhos.

Assim como eu.

Certos dias... Onde estará meu amigo de ginásio que nunca mais vi nem soube dele, terminado aquele ano de 1959 quando fomos, cada um, para o seu lado?

Certos dias me sinto personagem do Evangelho segundo São Mateus, que nunca li nem acredito numa única palavra.

É então que me pergunto o motivo de não ser o Messias, salvador eleito por Deus e a resposta me esbofeteia: Deus não existe, rapaz.

Certos dias quero largar tudo, livrar-me das opressões, desfazer-me dos gostos e, qual vagabundo solitário, esgueirar-me pelas frestas sem alguém a me perguntar por quê, sem ninguém a me dizer o que é bom para mim.

Certos dias pesam-me tanto as obrigações, doem-me tanto as responsabilidades, iludem-me tanto as esperanças que a cama não suporta, o almoço não resiste e o fim do dia me esgota.

Certos dias só me resta recorrer a mim mesmo, coisa que faço agora, enviando um poema antigo cujo título, pelo menos, ganhou o principal prêmio literário do Brasil:

LEITE DERRAMADO

Nunca chore sobre o leite derramado.
Rasteje e beba tudo o que puder.
Não fique assim dilacerado
por causa do “não” de uma mulher.

Dê de cara contra a porta mal fechada.
Coce o saco, a bunda e coisa e tal.
Fuja de armadilhas traiçoeiras
Disfarçadas de roseiras no quintal.

Lembre que por toda eternidade
Tudo vem depois de antes.
Reconheça que o que é tarde agora,
foi cedo outrora.

Gaste o tempo que te sobra
Entre quatro ou cinco amantes
dispensando aquela que cobra
o colar de diamantes.

O gosto amargo do pó
Vai lembrar que és mortal.
Morres contigo... e só,
Como todos, tal e qual.

Nunca chore sobre o leite derramado
Nem esqueça que amanhã será depois
E que tamanho amor desesperado
É o riso e alegria de outros dois.

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