quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

COMPOSITOR DA SAÚDE MENTAL

Fabrício Carpinejar 


Fotos de Cínthya Verri


Paulo Sérgio Rosa Guedes era extremamente ligado ao seu avô, que contava histórias saborosas e brincava de cartas. Otelo morreu de infarto fulminante numa terça chuvosa de 1956. Durante décadas, Paulo Sérgio, na época com 15 anos, reprisou a cena e pensou ter condições de socorrer e salvar o familiar. Carregou a culpa pela morte. Raciocinava por condicionais: "Se eu tivesse dormido na casa dele, não teria morrido"...
Foi seu trabalho de psicoanálise que o possibilitou a se desfazer da onipotência e ajudar centenas de gaúchos a perceberem que a culpa, na maior parte das vezes, é inventada.
"A culpa em si é a única causa de doença mental, é um delírio de grandeza, que faz com que a pessoa acredite que é causadora de tudo", explica.
Autor de livros como O "Sentimento de Culpa" e "A paixão, caminhos & descaminhos", poeta e ensaísta, Paulo Sérgio, 70 anos, mostra o quanto é possível ter mais prazer e menos decepção, o quanto a culpa indica uma vontade insustentável de ter controle sobre qualquer coisa. É hábito dizer que algo deu errado porque não se agiu de determinada maneira, mas - na verdade - o sucesso ou o fracasso de um negócio ou relacionamento não depende somente de nossas ações.
"Não somos o centro do mundo, talvez tenhamos que descobrir qual é o nosso mundo para aprender a ser livre".
Em sua residência-escritório no alto da avenida Carlos Gomes, em Porto Alegre, Paulo Sérgio tem o despojamento da alegria. Sabe que o "riso é a coisa mais séria que existe". Gargalha entre frases de efeito. Articula pequenas teses em aforismos: "O que leva o jovem à insônia é o que faz o velho dormir" ou "É insuportável sermos tão diferentes uns dos outros".
Não se veste de modo pomposo, está sempre esportivo e tem a mania curiosa de calçar sapatos brancos. Na hora de comprar, não usa cartão de crédito ou cheque especial. Não sofre com aquilo que não é, muito menos pretende gastar o que não tem. Mantém o mesmo carro de 1994 na garagem, um Ford Taurus.
Paga à vista cada palavra. Não remói amargura.
"O que foi já me ensinou, o que virá não sei".
Poderia ser um xamã, um líder espiritual, mas é um dos psiquiatras mais conceituados do Rio Grande do Sul, com 42 anos de atuação, um exército de fãs e uma tropa de imitadores. Identifica a psiquiatria como música, converte conceitos em fala simples e comunicativa, transforma o jargão em sinfonia: ouvir é entender, amar é cuidar.
"Como ajudaremos com termos técnicos?", pergunta.
Quando recebeu de presente o piano de sua mãe Zuleika, na adolescência, teve vontade de recitar o texto “Gradiva” de Freud. É um compositor da saúde mental. Seu pendor acústico - toca igualmente violão e cavaquinho – emana de uma casa tomada pela arte, em que seu pai, também psiquiatra, professor da UFRGS, recebia amigos para longas e acaloradas discussões.
"Meu pai Paulo Luís Vianna Guedes morreu jovem, aos 52 anos, mas escondeu o riso no meu para continuar nossa serenata".
Seu pensamento é um antídoto numa época de festas de Natal e virada, de receio pelas férias, de excessivos gastos, de encontros familiares e ressentimentos.
"Final do ano é uma continuação do ano anterior. Sem pânico diante da página em branco, é apenas prosseguir escrevendo."
Hoje existe uma descarga desproporcional de cobrança: é cuidar do corpo, é atender as metas no trabalho, é sofrer por não acompanhar os filhos ou por não se dedicar ao namoro.
"Para que enlouquecer?", questiona. "Paga-se caro por preocupações irrelevantes".
Um de seus achados de percepção é desenvolver as diferenças entre culpa e responsabilidade. Por mais que soem parecidos, não são sinônimos.
Culpa é se isentar da ação, como se não tivesse envolvimento com as escolhas da própria vida. Responsabilidade é aceitar a vida como aconteceu - ainda que não tenha sido perfeita.
Quem é culpado vai adiar um prazer inúmeras vezes, é capaz de reclamar do trabalho e não mexer uma vírgula para mudar de emprego, criticar seu marido ou mulher e manter a rotina do jeito que não gosta para permanecer praguejando.
"É mais confortável se portar como culpado do que assumir os próprios desejos. Há gente que desabafa que não tem tempo para os filhos, mas não reivindica seu tempo, não abre seu tempo e procura encontrar desculpas externas para não ser criticado".
Então, a culpa traz uma dupla fantasia: de controle, em que a pessoa se vê geradora do que de ruim acontece em sua volta, e de fatalidade, em que não se sente apta a modificar o comportamento.
De acordo com Paulo Sérgio, o cotidiano depende de sorte e azar, daquilo que chamamos de acaso. Nada mais do que isso. E grande parte dos aborrecimentos surge da ilusão de ser importante em todo momento.
O culpado não faz por mal, ele mente para si e para os outros, é um enganado e um enganador. Sua atitude garante benefícios, senão não seria largamente adotada: preserva a idealização, cria amizades pela dependência do sofrimento e anula a autoridade de suas opções.
No período em que fumava, Paulo fingia que consumia um maço por dia, porém já destrinchava três carteiras. Prolongou a mentira para não arcar com as consequências de seu vício.
"Imaginamos que mentindo para si os demais não descobrirão. O que me faltava era opinião própria, reconhecer que não deveria ser melhor do que eu era, mas melhor no que eu realmente era".
É uma espécie de transe, de glorificação da vítima, de coitadismo insaciável; o problema passa a ser eternamente alheio, do governo, dos pais, do casamento, do mercado de trabalho, do trânsito.
"Na terapia, o culpado não procura ajuda, e sim um fiador, quer que concordemos com seus motivos para continuar sofrendo em vão. Chega com a alma vendida. A psicoanálise é o oposto: a arte de restituir a uma pessoa a alma que ela tem.”
A devolução da alma se desenrola pelo caminho da simplicidade: admitir o tamanho da experiência, acolher os defeitos e as falhas, permitir-se essencialmente errar e seguir adiante. Não ser superior ao passado, mas se contentar com o possível, o deliciosamente possível.
Paulo Sérgio é tão comum, que talvez ninguém repare na rua a desenvoltura de seu olhar. O brilho malandro de alguém que desvendou a verdade, recusando atalhos e assumindo suas vivências. Ele é um homem que trocou o poder pela confiança. Um negócio sábio.
June Schuck, 64, esposa há cinco décadas, é testemunha de sua enxurrada de idéias. Assim como seus filhos Luciana, Paulo Roberto, Ana Luísa e o neto Pedro. A família ri quando revela que o marido-pai-avô só poderia ter nascido em 1941, na maior enchente de Porto Alegre.
Não há dique que o contenha.


DECÁLOGO
 DA CULPA


1. O sentimento de culpa nunca é conseqüência, e sim causa.
2. Evite lista de intenções. Intenção não existe. Caso pretende fazer algo, faça agora. A ação é terapêutica.
3. Superfaturamos os dissabores. Tudo é muito dramático, inesquecível, incontornável. A vida é bem mais simples do que se imagina.
4. Ao invés de dizer o que se deseja, existe a fantasia de que o outro nos conhece e pode nos antecipar. É uma cilada: cobrará por não ser adivinhado.
5. Desconfie de sua importância: aquele inimigo mortal nem sequer sabe que você existe.
6. Reconheça que o outro não é igual: a diferença entre duas pessoas é maior do que entre dois animais de espécies distintas (Montaigne).
7. Em vez de interpretar, escute com atenção. Interpretar é se defender mais do que receber.
8. Não procure justificar o que fez, apenas diga que fez.
9. Se mantém a mesma opinião sempre, algo está errado. Coerência é mudar de opinião.
10. Inverta o mandamento “ame o próximo como a si mesmo” para “ame a si mesmo para amar o próximo”.
Publicado na Revista Contigo!5 de janeiro de 2011

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